Pois é…
Infelizmente essa é a dura realidade.
A verdade é
que ao aprofundarmos o conhecimento sobre o quão complexo é funcionamento desta
grande máquina que é o nosso corpo ficamos surpreendidos de como é que isto não
dá merda asneira mais vezes.
Imaginemos o
nosso corpo como uma grande fábrica em que cada célula tem o seu lugar e a sua
tarefa. Como qualquer fábrica que se preze existe um sector de controlo de
qualidade responsável por garantir que tudo o que sai da unidade de produção
está em conformidade.
Sempre que uma nova célula se forma ela é verificada para
detectar eventuais erros. As células em conformidade levam o carimbo de
qualidade e seguem a sua vidinha.
Caso se
verifique a ocorrência de algum erro tenta-se a sua reparação, mas casos há em
que a reparação é impossível. Dá-se então ordem a essa célula que se “suicide” em
prol de um bem maior (um processo de morte celular programada chamado apoptose).
Este suicídio celular é também importante quando as células chegam ao seu fim
de vida, sendo dada ordem que prossigam com a sua destruição uma vez que
perderão a capacidade de desempenhar correctamente as suas funções.
Mas de vez em
quando há quem durma em serviço e lá passa pelo controlo de qualidade uma
célula ou outra com defeito. Mesmo assim temos ainda o nosso sistema imunitário
em alerta para destruir “seres estranhos” que vagueiem pelo nosso corpo mas, guess what, por vezes também ele falha!
Nem sempre o sistema imunitário é infalível. Fonte: Scientific Infographics: Editorial Cartoons |
Estes erros (chamados
mutações) ocorrem numa estrutura celular conhecida de todos, o DNA (do inglês
desoxirybonucleic acid). É o DNA que
contém toda a informação sobre as nossa células e o nosso corpo. Esta
informação está organizada em genes que ordenam a formação de novas proteínas,
a destruição de outras, a localização e função de cada célula do nosso corpo. É
nele que está a informação de que a célula X vai pertencer ao olho e a célula Z
ao rim e que características devem ter cada uma delas para que assim seja. No
fundo o DNA é como o manual de instruções de cada célula do nosso corpo.
E é quando
percebemos que este manual de instruções é constituido por cerca de 3 biliões de
caracteres (as unidade elementares do DNA chamadas nucleótidos) e que estas têm
que ser copiadas uma a uma cada vez que uma célula se divide, que percebemos
também a tal elevada probabilidade de dar asneira. E tanto maior será quanto
maior for a taxa de regeneração de um tecido (ou seja, quanto maior for a
necessidade de formação de novas células e do “suicidio” programado das que já
estão demasiado velhas para fazer o seu trabalho). Exemplos disso são a medula
óssea, a pele e os epitélios do tubo digestivo.
E se muitas
vezes um outro erro não traz grande mal ao mundo e a célula consegue continuar
na sua vidinha normal, estes erros podem ir-se acumulando ao longo do tempo e
acabar por afectar zonas do manual de instruções que determinam o funcionamento
de algumas funções mais importantes da célula.
São estas mutações
que levam a que a célula “defeituosa” fique fora de controlo e se multiplique
desenfreadamente, ignorando todos os sinais de que algo está errado e deve
parar de multiplicar-se. Podem também levar a que a célula ignore todos os
sinais de que a sua hora chegou e deve dar início ao processo de apoptose (o
tal suícidio celular), tornando-a quase como imortal (tipo Ducan MacLeod, mas
com muito menos estilo!)
A
multiplicação desenfreada destas células leva a uma maior probabilidade de
ocorrerem mais mutações o que por sua vez leva a que elas se continuem a
multiplicar cada vez mais rapidamente e fazendo até com que estas células
ganhem algumas vantagens competitivas relativamente às células “normais”. Esta
é uma das características mais marcante das células cancerígenas: não saber
quando parar! Para além da sua capacidade para consumir nutrientes a uma taxa
muito superior à das células normais (e até ordenar a formação de novos vasos
sanguíneos para as alimentar quando formam os agrupamentos a que chamamos
tumores), as células cancerígenas ignoram os sinais das células vizinhas que
numa situação normal as faria perceber que a coisa ficou fora de controlo, já
chega de crescer e toca a desamparar a loja. Para além disso estas células
defeituosas perdem a capacidade de se especializar (ou seja, a capacidade de
receberem indicações de que são uma célula de um rim ou de um pulmão permitindo
que se multipliquem mais rapidamente ao não perder tempo a se reorganizarem
para exercer estas funções especializadas). As células cancerígenas não têm
também as proteínas que normalmente levam à agregação das células às suas
vizinhas, o que lhes facilita a tarefa de se espalharem e para outras zonas do organismo.
As células cancerígenas não sabem quando parar! Fonte: Beatrice the Biologist |
E afinal
porque é que ocorrem essas tais de mutações? As mutações podem ocorrer apenas
por uma questão probabilística, resultado de falhas naturais nestes processos
tão complexos que diariamente ocorrem no nosso organismo. Com tanta coisa a
acontecer a tantos intervenientes é natural que algo possa falhar. Elas podem
também ser resultado da influência de factores externos como a exposição a
radiação, químicos, tabaco, vírus ou bactérias ou da alimentação. Existem também
alguns genes “defeituosos” que podem ser transmitidos de pais para filhos aumentando
a probabilidade de vir a desenvolver determinados tipo de cancro (daí se dizer
que alguns tipos de cancro, como o da mama ou próstata podem ser hereditários).
Já dizia a
outra senhora que “o contrário de estar vivo é estar morto”. E analisando bem
as coisas é fácil perceber que apesar de ser um azar do caraças que nos calhe a
nós e que levar uma vida baseada em hábitos saudáveis (como a prática de
desporto e uma alimentação equilibrada) é sem dúvida um forma de prevenção mais
que comprovada, nada nos garante que a coisa um dia não nos bata à porta. Basta
estar vivo.
OK, nada de
pânicos! Mas esta finalização quase fatalista serve para deixar o alerta de
que, para além dos hábitos de vida saudável, não devemos nunca descurar os
exames períodicos de rastreio. No caso de o azar nos bater à porta, a detecção
precoce do problema é importantíssima para uma maior taxa de sucesso no
tratamento. Por isso, para quem se esqueceu, toca a ir já marcar as ecografias,
mamografias e outras –afias afins!
Para quem quer ler mais um pouco sobre o assunto (escrito por pessoas mais sábias que eu...):
Simões,
Manuel S., O Cancro. Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Relógio D'Água Editores. Maio 2014 (Estas edições costumam estar à venda nos supermercados Pingo Doce. Eu encontrei recentemente na FNAC).
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