segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Estar vivo pode causar cancro

Pois é… Infelizmente essa é a dura realidade.

A verdade é que ao aprofundarmos o conhecimento sobre o quão complexo é funcionamento desta grande máquina que é o nosso corpo ficamos surpreendidos de como é que isto não dá merda asneira mais vezes.

Imaginemos o nosso corpo como uma grande fábrica em que cada célula tem o seu lugar e a sua tarefa. Como qualquer fábrica que se preze existe um sector de controlo de qualidade responsável por garantir que tudo o que sai da unidade de produção está em conformidade. 

Sempre que uma nova célula se forma ela é verificada para detectar eventuais erros. As células em conformidade levam o carimbo de qualidade e seguem a sua vidinha.

Caso se verifique a ocorrência de algum erro tenta-se a sua reparação, mas casos há em que a reparação é impossível. Dá-se então ordem a essa célula que se “suicide” em prol de um bem maior (um processo de morte celular programada chamado apoptose). Este suicídio celular é também importante quando as células chegam ao seu fim de vida, sendo dada ordem que prossigam com a sua destruição uma vez que perderão a capacidade de desempenhar correctamente as suas funções.

Mas de vez em quando há quem durma em serviço e lá passa pelo controlo de qualidade uma célula ou outra com defeito. Mesmo assim temos ainda o nosso sistema imunitário em alerta para destruir “seres estranhos” que vagueiem pelo nosso corpo mas, guess what, por vezes também ele falha!

Nem sempre o sistema imunitário é infalível. Fonte: Scientific Infographics: Editorial Cartoons


Estes erros (chamados mutações) ocorrem numa estrutura celular conhecida de todos, o DNA (do inglês desoxirybonucleic acid).  É o DNA que contém toda a informação sobre as nossa células e o nosso corpo. Esta informação está organizada em genes que ordenam a formação de novas proteínas, a destruição de outras, a localização e função de cada célula do nosso corpo. É nele que está a informação de que a célula X vai pertencer ao olho e a célula Z ao rim e que características devem ter cada uma delas para que assim seja. No fundo o DNA é como o manual de instruções de cada célula do nosso corpo.

E é quando percebemos que este manual de instruções é constituido por cerca de 3 biliões de caracteres (as unidade elementares do DNA chamadas nucleótidos) e que estas têm que ser copiadas uma a uma cada vez que uma célula se divide, que percebemos também a tal elevada probabilidade de dar asneira. E tanto maior será quanto maior for a taxa de regeneração de um tecido (ou seja, quanto maior for a necessidade de formação de novas células e do “suicidio” programado das que já estão demasiado velhas para fazer o seu trabalho). Exemplos disso são a medula óssea, a pele e os epitélios do tubo digestivo.

E se muitas vezes um outro erro não traz grande mal ao mundo e a célula consegue continuar na sua vidinha normal, estes erros podem ir-se acumulando ao longo do tempo e acabar por afectar zonas do manual de instruções que determinam o funcionamento de algumas funções mais importantes da célula.

São estas mutações que levam a que a célula “defeituosa” fique fora de controlo e se multiplique desenfreadamente, ignorando todos os sinais de que algo está errado e deve parar de multiplicar-se. Podem também levar a que a célula ignore todos os sinais de que a sua hora chegou e deve dar início ao processo de apoptose (o tal suícidio celular), tornando-a quase como imortal (tipo Ducan MacLeod, mas com muito menos estilo!)

A multiplicação desenfreada destas células leva a uma maior probabilidade de ocorrerem mais mutações o que por sua vez leva a que elas se continuem a multiplicar cada vez mais rapidamente e fazendo até com que estas células ganhem algumas vantagens competitivas relativamente às células “normais”. Esta é uma das características mais marcante das células cancerígenas: não saber quando parar! Para além da sua capacidade para consumir nutrientes a uma taxa muito superior à das células normais (e até ordenar a formação de novos vasos sanguíneos para as alimentar quando formam os agrupamentos a que chamamos tumores), as células cancerígenas ignoram os sinais das células vizinhas que numa situação normal as faria perceber que a coisa ficou fora de controlo, já chega de crescer e toca a desamparar a loja. Para além disso estas células defeituosas perdem a capacidade de se especializar (ou seja, a capacidade de receberem indicações de que são uma célula de um rim ou de um pulmão permitindo que se multipliquem mais rapidamente ao não perder tempo a se reorganizarem para exercer estas funções especializadas). As células cancerígenas não têm também as proteínas que normalmente levam à agregação das células às suas vizinhas, o que lhes facilita a tarefa de se espalharem e para outras zonas do organismo.


As células cancerígenas não sabem quando parar! Fonte: Beatrice the Biologist


E afinal porque é que ocorrem essas tais de mutações? As mutações podem ocorrer apenas por uma questão probabilística, resultado de falhas naturais nestes processos tão complexos que diariamente ocorrem no nosso organismo. Com tanta coisa a acontecer a tantos intervenientes é natural que algo possa falhar. Elas podem também ser resultado da influência de factores externos como a exposição a radiação, químicos, tabaco, vírus ou bactérias ou da alimentação. Existem também alguns genes “defeituosos” que podem ser transmitidos de pais para filhos aumentando a probabilidade de vir a desenvolver determinados tipo de cancro (daí se dizer que alguns tipos de cancro, como o da mama ou próstata podem ser hereditários).  

Já dizia a outra senhora que “o contrário de estar vivo é estar morto”. E analisando bem as coisas é fácil perceber que apesar de ser um azar do caraças que nos calhe a nós e que levar uma vida baseada em hábitos saudáveis (como a prática de desporto e uma alimentação equilibrada) é sem dúvida um forma de prevenção mais que comprovada, nada nos garante que a coisa um dia não nos bata à porta. Basta estar vivo.


OK, nada de pânicos! Mas esta finalização quase fatalista serve para deixar o alerta de que, para além dos hábitos de vida saudável, não devemos nunca descurar os exames períodicos de rastreio. No caso de o azar nos bater à porta, a detecção precoce do problema é importantíssima para uma maior taxa de sucesso no tratamento. Por isso, para quem se esqueceu, toca a ir já marcar as ecografias, mamografias e outras –afias afins!

Para quem quer ler mais um pouco sobre o assunto (escrito por pessoas mais sábias que eu...):

Simões, Manuel S., O Cancro. Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Relógio D'Água Editores. Maio 2014 (Estas edições costumam estar à venda nos supermercados Pingo Doce. Eu encontrei recentemente na FNAC).





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