segunda-feira, 26 de junho de 2017

Vou só ali tirar outro cancro e já volto

Quem nos conhece sabe que cá por casa não somos grande adeptos de fazer planos. Somos meninos para a meio da manhã decidir apanhar o comboio nocturno para Madrid só para passar a noite de Ano Novo. Para enfiarmos umas roupas num saco e nos metermos no (saudoso) Twingo rumo a Marrocos só porque é fim de semana prolongado. Ligar a televisão e fazer-nos à estrada perante a notícia de que em Óbidos há festa e vão começar a assar um porco (ainda chegamos lá a tempo de uma sandocha). A acabar em locais recônditos como Brunei Darussalam ou as ilhas Faroé não porque estava nos planos mas porque descobrimos um avião, barcaça ou carroça que nos leva até lá!

Pois hoje rumamos a norte. Não, não nos deu à última da hora vontade de ir ver as ressacas do S. João, nem tão pouco estamos com desejos de uma francesinha. O meu corpo é que entrou na onda e decidiu que também não gosta de fazer planos. 

Já se havia descoberto há algum tempo um nódulo na tiróide cuja biópsia revelou um resultado de significado incerto (outra característica comum a todas as células do me corpo é o mau feitio! Então não podiam ter dito logo?). Pois agora, em preparação para a radioterapia, essa biópsia foi repetida e confirma-se este amigo é também ele um carcinoma. 

Então tens metástases na tiróide, é isso? Nada disso! É um carcinoma independente, dono do seu nariz e que nada tem a ver com o inquilino que em tempos (que é como quem diz há cerca de mês e meio) habitou a  minha mama. Dois tumores primários, hem? Mania das grandezas! 

Agora a parte boa. O carcinoma papilar da tiróide é um tipo de tumor bastante indolente, chegando mesmo a haver quem viva uma vida inteira sem sonhar que o tem. Havendo diagnóstico o tratamento é bastante simples com uma taxa de sucesso superior a 98%.

Como diz o meu sábio fisioterapeuta: "Se te dessem uma lista de cancros para escolher, escolhias este!". (Conselho à tripulação: se aparecer por aí alguém com uma lista de cancros para escolher fujam!! Não é o tipo de companhia que queiram ter.) 

Então e porquê ir ao Porto?

Porque no meio disto tudo há urgência em expulsar este inquilino indesejado antes de iniciar a radioterapia, o próximo passo do tratamento da mama. Isto porque, no tratamento por radioterapia, não é só a zona da mama onde se encontrava o tumor que é irradiada, mas também as regiões onde se encontrem gânglios que possam de alguma forma conter células malignas (como é o caso da região supraclavicular). E não é raro que a irradiação desta região leve à inflamação e desenvolvimento de maleitas na tiróide. Ora, se a minha tiróide já não está boa, há que removê-la antes de começar, pois não queremos que o meu corpo se lembre de fazer mais disparates. Como depois da remoção há ainda que esperar a cicatrização completa para poder começar a radioterapia, (que, para garantir a sua eficiência, deve ser iniciada dentro de uma janela de tempo após cirurgia da mama) a coisa tornou-se um caso urgente.

E como não temos muito tempo e o relógio continua a andar, o meu querido cirurgião de mama moveu mundos para encontrar um cirurgião de confiança com disponibilidade para fazer esta cirurgia para ontem. E conseguiu! Mas lá terei que me meter no quim e fazer uns quilómetros de "pouca-terra" para resolver a coisa. Podia ser de outra forma? Podia! Mas não era a mesma coisa!

E tenho a certeza que a norte também terão no bloco a máquina que faz "Ping" para me deixar mais descansada (para quem não acompanha o blog (shame on you) vejam aqui), e que as anestesias dão uma moca tão fixe como as de Lisboa. Desta vez vou ver é se treino qualquer coisa mais compostinha para dizer ao acordar (também não leram? Aiai. Vejam lá aqui!). Já agora quero ver se deixo melhor reputação nas unidades hospitalares do norte do que aquela que deixei aqui pela capital.

Estou a pensar ir a ler qualquer coisinha erudita no comboio. Acho que ficava bem acordar da anestesia e dizer algo como "Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da Terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira." Era bonito, hen? Mas apesar de andar há muito com vontade de reler Kundera e aquele que é um dos meus livros favoritos, o que resta do meu cérebro neste momento não dará para nada mais complexo do que a última edição da Nova Gente (e não sei se acordar a falar dos gémeos do Ronaldo será melhor opção para dar um ar composto).

Deixando-me de divagações, e em modo de resumo, isto de ir ao Porto para retirar mais um inquilino faz-me sentir com uma espécie de síndrome de marinheiro: um amor em cada porto. Na minha versão: um cancro em cada cidade.

Aviso também que esta será a última paragem da minha tournée. Sei que é importante descentralizar, que Portugal não é só Lisboa e Porto mas não contem comigo para mais cancros para andar por aí a distribuir.

Dito isto, e para finalizar, mais uma vez peço aos senhores que organizam o universo e as energias, chakras, auras e seja lá o que for... Já chega, tá? A menina está cansada e tem mais que fazer do que passar a vida nisto! Entendidos? Agradecida!









sexta-feira, 23 de junho de 2017

Hoje é dia de fisioterap(AI)

Uma das melhores decisões que tomei foi a de iniciar a fisioterapia logo após a cirurgia. A fisioterapia não só ajuda na prevenção de aparecimento do temido linfedema (esse assunto fica para outro dia) como ajuda a recuperar a mobilidade total do braço e ombro, que ficam afectadas devido ao esvaziamento axilar.
 
Dias após a cirurgia comecei logo a ficar com o braço "preso", mesmo fazendo todos os exercícios tal como me ensinaram no hospital. Cada vez que tentava esticar e levantar o braço tinha a sensação de que tinha lá dentro um elástico em tensão e prestes a rebentar. E logo, logo, adquiri o look Quasimodo. Toda encurvada e com o braço sempre naquela posição de quem fez demasiado exercício de braços no ginásio e perdeu a capacidade de fechar o sovaquinho. Na parte anterior do braço tinha também uma sensação estranha de dormência e dor em simultâneo (sim, é possível!). Tinha no braço aquele mesma sensação que trazemos na boca após uma ida ao dentista, em que não sentimos os lábios e achamos que estão enooormes mas, em simultâneo, uma dor terrível ao toque, como se a minha pele estivesse queimada.
 
Mas desengane-se quem pense que a fisioterapia é uma coisa divertida! Sim, que isto de recuperar não é suposto ser simples. Sais daqui melhor, mas durante meia hora levas com uma sessão de dor e sofrimento (ok, talvez esteja a exagerar... mas que dói como o caraças lá isso dói!).
 
Rapidamente lhe apanhei a manha! Venho aqui, amassa-me como se de um papo-seco me tratasse, e esta meia hora é um mar de dor tal que no fim a sensação será sempre de alívio ("eh lá, estou muito melhor. Ainda há cinco minutos me doía horrores e agora já só dói um bocadinho"). Ahhh, malandro!
 
O auge de cada sessão era sempre aquele momento em que, após um puxão, se ouvia um "crraaack". Ah e tal, são cordões de aglomerados de vasos linfáticos e cenas e têm que ser quebrados. Engana-me que eu gosto! O comum dos mortais alivia o seu stress rebentando as bolhinhas daqueles plásticos de protecção que normalmente envolvem material delicado. Os fisioterapeutas têm um upgrade da coisa e libertam o stress a estoirar estas coisas nos nossos bracinhos!
 
Apesar de sair de lá sempre com a sensação estranha que ando a pagar para apanhar, continuo a achar que a fisioterapia foi das melhores opções que fiz. Não só foi terapêutico, pois tive oportunidade de descarregar o stress chamando nomes feios a alguém (sempre para dentro, não fosse apanhar em dobro!) como ao fim de algumas sessões recuperei a quase totalidade da mobilidade do braço.
 
E hoje será a última sessão antes da radioterapia e tenho que confessar que vou ter saudades durante este intervalo! No meio disto tudo ainda tive a sorte de apanhar um mega fisioterapeuta cheio de sentido de humor e que tem paciência para ouvir os meus disparates (e vá, até rimos um bocadinho apesar de metade do tempo eu ter vontade de o esganar!).
 
Obrigada José pelo excelente trabalho! (e sim, é um elogio e agradecimento sincero! Não é só "cagufa" que ele leia isto e hoje me dê uma sova em dose extra!)
 
 
 
 
 
 

terça-feira, 20 de junho de 2017

Olhares indiscretos

(este texto deve ser lido ao som da música de "O Bom, o Mau e o Vilão")
 
Entro na sala de espera. Como sempre levo a careca ao léu e na cara apenas dois pelinhos espetados, um em cada sobrancelha, que heroicamente se mantêm indiferentes aos químicos.
 
Preparo-me para mais um duelo. Olho em volta e identifico imediatamente o "inimigo". São duas. Olham fixamente. 
 
Decido começar pela do ar espantado. Parece ser mais fácil. Também eu olho fixamente. Olhos nos olhos, como quem joga ao sério. Rapidamente a minha se oponente se atrapalha e desiste. One down, one to go!
 
Passo ao segundo round. Estamos frente a frente. Olho-a nos olhos. Ela suspira. Por momentos hesito se devo sentar-me ao seu lado, dar-lhe a mão e consolá-la. "Sim, minha senhora, tenho cancro. Mas vá, ânimo, vai passar!". Levamos algum tempo nisto. Quando eu deixo de olhar volto a sentir-me observada. Oiço mais um suspiro triste (oh senhora, ultrapasse lá isso!). Felizmente chamam-na para os seus afazeres médicos. Mas não sem que ainda olhe mais uma vez, só para ter a certeza. Talvez queira uma foto para mostrar às amigas: "Vês, tão novinha... aquela careca era porque tinha aquela doença, de certeza".
 
(pára a música)
 
No momento em que escrevo este texto já sou apenas mais uma na multidão. O cabelo cresceu (tenho agora apenas um ar rebelde de quem quis experimentar um look radical). Mas durante quase 6 meses fui o centro das atenções. Nunca me habituei. Nunca gostei.
 
As pessoas não hesitam em olhar ao ver uma careca. Compreendo. Não é algo comum. E não seria um problema se fosse um simples olhar. Se, ao olharmos de volta, recebêssemos o esboço de um sorriso, como quem diz: "Olha, grande m**da que te aconteceu, mas vai correr tudo bem!". Mas esses olhares são raros.
 
Normalmente recebia o olhar de pena (exacerbado quando acompanhada pela minha filha). Aquele olhar do "Oh, coitadinha... a menina é tão pequenina". Pois é, e a mamã dela vai cá estar muito tempo para a acompanhar! Morrer não está nos planos malta! Daí a careca! Boa?
 
Um upgrade do olhar de pena é o olhar "Já foste". Este olhar caracteriza-se por um olhar de pena acompanhado por um estalido de língua e um levantar de sobrancelha. Aquele estalido do "Olha, temos pena!". Um dos meus favoritos.
 
Tive também o prazer de ser contemplada com olhares de indignação (sim, que isto de ter a lata de andar de careca de fora faz com que as pessoas se lembrem que o cancro existe. E pior, que pode apanhar qualquer um!), olhares de nojo e medo (principalmente quando a minha careca andou acompanhada de uma tosse chata devido às baixas defesas. Queres ver que isto se pega?), olhares de avestruz (aquele olhar assim bem de esguelha... pode ser que ela não note) e o olhar "vou tão distraído a olhar para a tua careca que nem dei que existe uma pessoa agarrada a ela" (estes culminavam sempre num encontrão ou choque).
 
Senti-me muitas vezes um bicho raro. A sensação de ter toda a gente interessada na nossa presença mas ninguém querer assumir esse interesse porque isso implica olhar o cancro de frente não ajuda nada a quem está a passar por um processo que por si só já é tão doloroso.

Obrigada a quem durante estes meses me abordou para me contar que tinha passado pelo mesmo e agora estava tudo bem, a quem me deu um miminho extra ao ver a minha careca, a quem me presenteou com um sorriso!
 
Por isso, quando virem uma careca na rua sorriam! Vão ver que não dói nada!
 
 
 
 
 
 
 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

CU-CÚ, estou aqui!

Quando me mandaram fazer uma biópsia por suspeita de cancro de mama a primeira coisa que fiz foi aquilo que não devemos fazer mas toda a gente faz: ir pesquisar ao Dr Google! Tentei todas as conjugações de palavras de que me poderia lembrar e deparei-me com imensos blogs de pessoas que tinham já confirmado o temido diagnóstico. Muitos foram uma ajuda, outros nem tanto, mas muitos apenas exacerbaram o meu pânico. Porquê? Porque muitos deles terminavam abruptamente. Um post final onde não se anunciava qualquer despedida, e de seguida o vazio...
 
Medo! Parou porquê? Está muito mal? Não sobreviveu? Ai que medo!
 
Por isso, e dado a minha pouca assiduidade neste cantinho achei que devia vir só dar notícias e dizer que está tudo bem (não vá mesmo haver alguém desse lado que lê o que eu para aqui escrevo!).
 
Não, não desapareci! Mas não tenho tempo...
 
Ah, mas estás em casa e tal e coisa, como não tens tempo?
 
É que isto de ter cancro é uma trabalheira desgraçada! De consulta em consulta, ora com o médico cirurgião, ora com a oncologista, ora com o médico radioterapeuta... agora vai mostrar à enfermeira para ver as costuras, agora vai ao fisioterapeuta porque o bracinho está empenado. Vejo-daqui a dois dias. Vamos tirar uns pontinhos. Olhe, as costuras abriram. Vamos pôr um pensinho. Volte na segunda.  Bolas, que a menina é de material manhoso e fez alergia ao pensinho. Volte para a semana para dar uns pontinhos. Amanhã vem mostrar os pontos. Que bonitos, volte daqui a dois dias. Então amanhã volte cá para eu ver como está. Ufa! A minha agenda é mais agitada do que a de qualquer nonagenário com vestígios de hipocondria.
 
A coisa está tão agitada que cada vez que olho para o meu calendário de marcações instintivamente levanto a mão e grito BINGO!
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 9 de junho de 2017

O amor é lindo

A curtir um mega concerto.

Projecção de fundo mostra um grupo de esqueletos luminosos a confraternizar e outras coisas que mais.

Marido olha para mim e diz com ar animado: "Olha, é um PET!"

Rimos os dois da piada improvisada.

Pausa.

Esta cena do cancro está a ir longe demais.

Precisamos de férias.



Imagem de Janne Parviainen

       

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