terça-feira, 20 de junho de 2017

Olhares indiscretos

(este texto deve ser lido ao som da música de "O Bom, o Mau e o Vilão")
 
Entro na sala de espera. Como sempre levo a careca ao léu e na cara apenas dois pelinhos espetados, um em cada sobrancelha, que heroicamente se mantêm indiferentes aos químicos.
 
Preparo-me para mais um duelo. Olho em volta e identifico imediatamente o "inimigo". São duas. Olham fixamente. 
 
Decido começar pela do ar espantado. Parece ser mais fácil. Também eu olho fixamente. Olhos nos olhos, como quem joga ao sério. Rapidamente a minha se oponente se atrapalha e desiste. One down, one to go!
 
Passo ao segundo round. Estamos frente a frente. Olho-a nos olhos. Ela suspira. Por momentos hesito se devo sentar-me ao seu lado, dar-lhe a mão e consolá-la. "Sim, minha senhora, tenho cancro. Mas vá, ânimo, vai passar!". Levamos algum tempo nisto. Quando eu deixo de olhar volto a sentir-me observada. Oiço mais um suspiro triste (oh senhora, ultrapasse lá isso!). Felizmente chamam-na para os seus afazeres médicos. Mas não sem que ainda olhe mais uma vez, só para ter a certeza. Talvez queira uma foto para mostrar às amigas: "Vês, tão novinha... aquela careca era porque tinha aquela doença, de certeza".
 
(pára a música)
 
No momento em que escrevo este texto já sou apenas mais uma na multidão. O cabelo cresceu (tenho agora apenas um ar rebelde de quem quis experimentar um look radical). Mas durante quase 6 meses fui o centro das atenções. Nunca me habituei. Nunca gostei.
 
As pessoas não hesitam em olhar ao ver uma careca. Compreendo. Não é algo comum. E não seria um problema se fosse um simples olhar. Se, ao olharmos de volta, recebêssemos o esboço de um sorriso, como quem diz: "Olha, grande m**da que te aconteceu, mas vai correr tudo bem!". Mas esses olhares são raros.
 
Normalmente recebia o olhar de pena (exacerbado quando acompanhada pela minha filha). Aquele olhar do "Oh, coitadinha... a menina é tão pequenina". Pois é, e a mamã dela vai cá estar muito tempo para a acompanhar! Morrer não está nos planos malta! Daí a careca! Boa?
 
Um upgrade do olhar de pena é o olhar "Já foste". Este olhar caracteriza-se por um olhar de pena acompanhado por um estalido de língua e um levantar de sobrancelha. Aquele estalido do "Olha, temos pena!". Um dos meus favoritos.
 
Tive também o prazer de ser contemplada com olhares de indignação (sim, que isto de ter a lata de andar de careca de fora faz com que as pessoas se lembrem que o cancro existe. E pior, que pode apanhar qualquer um!), olhares de nojo e medo (principalmente quando a minha careca andou acompanhada de uma tosse chata devido às baixas defesas. Queres ver que isto se pega?), olhares de avestruz (aquele olhar assim bem de esguelha... pode ser que ela não note) e o olhar "vou tão distraído a olhar para a tua careca que nem dei que existe uma pessoa agarrada a ela" (estes culminavam sempre num encontrão ou choque).
 
Senti-me muitas vezes um bicho raro. A sensação de ter toda a gente interessada na nossa presença mas ninguém querer assumir esse interesse porque isso implica olhar o cancro de frente não ajuda nada a quem está a passar por um processo que por si só já é tão doloroso.

Obrigada a quem durante estes meses me abordou para me contar que tinha passado pelo mesmo e agora estava tudo bem, a quem me deu um miminho extra ao ver a minha careca, a quem me presenteou com um sorriso!
 
Por isso, quando virem uma careca na rua sorriam! Vão ver que não dói nada!
 
 
 
 
 
 
 

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