terça-feira, 29 de agosto de 2017

Fechou-se um ciclo

Hoje foi o último tratamento de radioterapia. O último tratamento do protocolo estabelecido para expulsar o cancro que se instalou sem ser convidado.

Hoje fechou-se um ciclo. Pelo sim pelo não vou trancá-lo num sítio de onde não fuja. Fechar bem a porta do passado e deitar a chave ao mar.

Been there, done that. Já chega!

Foram exactamente 10 meses e 2 dias de tratamentos intensivos. 10 meses e 2 dias que se multiplicaram e tantas vezes me pareceram anos.

Foram meses duros. Apesar das palhaçadas e brincadeiras que tantas vezes fizeram o corpo esquecer-se que doía, que quase o enganavam a achar que estava tudo bem.

E a cabeça foi tantas vezes buscar aquela frase, grafitada de fugida nos tapumes das obras do Chiado, pela qual passei durante meses a fio, a caminho das aulas de piano: "Estamos enterrados na merda, mas estamos vivos...".

Podia ser mais poético? Podia! Mas foi o meu cérebro que escolheu. Que achou que era a que mais se adequava àqueles dias maus. Que aquelas frases bonitas e inspiradoras que surgem ao quilo na internet não serviam para o que se passava no meu corpo. Ele lá sabe!

A quem ainda vem a caminho da meta, a iniciar ou algures no percurso dos tratamentos, digo-vos deste futuro paralelo que a meta está mesmo cá. Eu também duvidei da sua existência. Achei que ia correr e correr e nunca ia cá chegar. Mas agora aqui vos espero com a bandeirola a acenar à vossa passagem!

E como uma imagem vale mais que mil palavras, ficam as imagens e recordações de 10 meses e 2 dias que parecem ter sido anos.

Que venha o próximo capítulo!




terça-feira, 22 de agosto de 2017

Sobre a condição de doente oncológico no mercado de trabalho

"(Em vez de descriminar, despromover e retirar tarefas, o empregador ) antes tem o dever de adoptar um conjunto de medidas de adaptação das condições de trabalho para que sejam ajustadas à particularidade destes trabalhadores. Podem ser coisas simples e muitas vezes nem custam dinheiro: trocar funções, ajustar horários, pôr o trabalhador numa sala mais clean..."
Na minha opinião, para que tal se torne uma realidade, é necessário em primeiro lugar haver uma consciencialização geral dos efeitos que os tratamentos têm num doente oncológico (tantas vezes de modo permanente). Pelas vezes que me dizem: "estás com tão bom aspecto" (e agradeço o elogio), percebo que é complicado para terceiros compreenderem o mau estar e limitações que o doente oncológico continua a sentir mesmo após finalizar os tratamentos (que podem ir desde os problemas articulares e de mobilidade, a deficiências de imunidade, problemas cardíacos, de concentração...). Este desconhecimento pode muitas vezes levar à má interpretação das suas limitações como uma mera preguiça ou falta de vontade. 


É por isso tão importante a "educação" para a compreensão do que realmente significa e implica ser um doente oncológico e de que, mesmo sem recidivas da doença, este será doente oncológico para sempre.



P.S. podem continuar a dizer-me que tenho bom aspecto, que um elogio cai sempre bem! 

A ler aqui a entrevista sobre a discriminação do doente oncológico no mercado de trabalho com a investigadora Milena Rouxinol no jornal Público. 

😉

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Não é Natal, não é Natal (mas é como se fosse)

Mulher de 37 anos entra numa loja. Olha em volta e os seus olhos brilham ao ver ao longe algo que lhe parece ser o objecto há tanto desejado. 

É mesmo!!! Saltinhos de alegria! Grita pelo marido: "Olha, olha o que eu encontrei!!!". Ele acena sorrindo como quem diz: "Boa, era mesmo o que tu querias. Podes levar!"

Antes de dia 30 de Setembro de 2016 esta seria uma cena muito provavelmente passada numa sapataria. Os meus olhos brilhariam. Eram mesmo os sapatos que "preciso". O marido acenaria com um revirar de olhos: "Outros?? Vá, leva lá..."

Mas em Agosto de 2017 esta alegria deu-se ao encontrar a caixa de comprimidos perfeita! Linda, com oito compartimentos onde posso colocar a medicação que tenho que tomar todos os dias (e ainda me sobra um onde posso acrescentar uns M&Ms para usar em casos de urgência). E ainda vem dentro de uma bolsinha de neoprene vermelha. Fofo, não é?

Nos últimos tempos, devido ao meu cérebro queimadinho pela quimioterapia e duas anestesias gerais, já tive por demasiadas vezes a sensação de que houve tomas de comprimidos a duplicar e outras que nunca chegaram a acontecer (não conseguindo nunca bater o recorde de "chemo brain" da amiga do coração que tomou por engano o comprimido de outro membro da família quando ela nem sequer toma medicação! Luv u! 💗).

E como com medicação não se brinca, sendo de extrema importância que tanto a suplementação tiroideia como a hormonoterapia sejam tomadas direitinho e na hora certa, penso que ter assim tudo organizadinho é a melhor solução. E se poder ser numa bolsinha toda gira em vez de uma caixa sem graça melhor ainda. 

Se isto fosse um blog da moda seria agora a altura do giveaway da semana em que eu ofereceria aos leitores uma mão cheia de bolsinhas iguais à minha em troca de uns likes na página e a referência a 20 amigos nos comentários. Como não é podem colocar likes à vontade e chamar todos os vossos amigos e família (que eu até gosto de ter quem leia os meus disparates) mas infelizmente, se quiserem uma bolsinha igual à minha, terão que ir a uma Loja do Gato Preto e comprar uma para vós. 

P.S. Marido, este post não significa que deixei de "precisar" daqueles All Star amarelos, ok?

P.S.II. ... e dos Palladium. 







segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Vai-te embora ó papão

Insónia.

Palavra que até então não fazia parte do meu dicionário. 

Se há coisa em que sempre fui muito boa foi a dormir. Fosse em casa ou fora dela, na cama ou no sofá (ou, se as circunstâncias assim o ditassem, até no chão). Se o corpo achasse que era hora de dormir bastava aconchegar-me, fechar os olhinhos e aí ia eu para o mundo do algodão doce!

Depois veio a maternidade. Aí não perdi a capacidade de dormir. Arranjei foi alguém que veio pôr à prova a minha capacidade de viver sem dormir. Mas mesmo assim tantas vezes amamentei, mudei fraldas, embalei e cantei o "vai-te embora ó papão" em piloto automático, enquanto o meu cérebro continuava no seu ó ó. 

Depois veio o cancro. Primeiro achei que era do choque. Depois achei que era da quimioterapia. Depois seria da operação, do desconforto e de ter dormir sempre de barriga para cima. Agora será concerteza da radioterapia. Ou dos comprimidos. Ou dos macaquinhos no meu sotão que teimam em fazer tertúlias ás 4 da manhã. 

Às vezes acordo só porque sim. Outras acordo porque lá vem mais um afrontamento com os seus  suores e calores tropicais. Depois porque passa e fico cheia de frio. Ou porque a filha acorda a chamar por mim (ou, na modalidade mais recente, a chamar pela chucha. Só que a malvada deve ser surda e teima em não ir sozinha, por isso lá vou eu na mesma). Ou porque o cão do vizinho ladrou. Ou porque passou uma mosca e, quando tudo está em silêncio, aquelas asinhas turbinadas são tão ruidosas quanto a passagem de um F16 em velocidade limite. 

E depois de acordar já não há nada a fazer. Já está. Agora é até de manhã. 

E se por um lado é bom pois os dias tornam-se mais longos, por outro é tão mau pois os dias tornam-se tão mais longooooooossssssssss. E o cérebro já de si entorpecido fica ainda mais inapto. 

Vai-te embora ó papão (que entre o telhado e a minha casa ainda são uns quatro andares e ainda te aleijas!) 





quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Neverending Story...

Faz hoje 10 meses e 4 dias desde que recebi o diagnóstico... (não, não cheguei ao ponto em que tenho uma parede onde risco os dias como se de uma prisioneira me tratasse. Mas hoje deu-me para contar).

É que de vez em quando (e hoje é um desses dias) sinto-me como estando perdida numa história interminável. E na história interminável que todos conhecemos há um dragão voador fofinho e eu ainda não tive direito a nada. 

Parece-me injusto!

É que para além de ser um dragão da sorte e ser fofinho que se farta dava-me taaaaanto jeito para ir aos tratamentos....



Olha eu a ir de dragão para a radioterapia!







terça-feira, 1 de agosto de 2017

Radioterapia doutro mundo

A radioterapia utiliza radiação ionizante de alta intensidade para destruir as células cancerígenas. A radiação irá danificar o DNA da célula, tirando vantagem da incapacidade que as células cancerígenas têm de proceder à sua reparação. As células saudáveis que sejam também afectadas pela radiação têm a capacidade de reparar o seu DNA, sendo nesta diferença que se baseia o balanço entre o benefício e danos colaterais desta terapia. As células malignas não conseguem corrigir os danos no DNA e morrem, enquanto que as células saudáveis accionam os seus mecanismos de reparação de DNA, sobrevivendo e continuando tranquilamente na sua vida.

A radioterapia é normalmente utilizada como terapia adjuvante no cancro de mama primário, tendo como objectivo minimizar a probabilidade de reicidivas. Tal é feito eliminando as células malignas que possam ainda permanecer após a quimioterapia e/ou cirurgia.

A técnica mais comummente utilizada é a de radioterapia externa, em que a radiação é direccionada para incidir de forma o mais localizada possível nos locais a tratar. Os locais a irradiar e o tempo de tratamento são definidos pela equipa médica dependendo do quadro clínico de cada paciente, sendo que o tempo médio de tratamento varia entre as 15 e as 35 sessões diárias. A região da mama (na sua totalidade ou apenas parcialmente) é sempre alvo de tratamento após tumorectomia (cirurgia conservadora), podendo ser também irradiadas as cadeias ganglionares axilar, supraclavicular e mamária interna e a parede torácica (no caso de mastectomia).

As sessões são rápidas e indolores, podendo porém surgir alguns efeitos secundários incómodos. Os mais comuns são o cansaço, dificuldade em deglutir, alterações no tecido mamário (formação de fibroses), lesões tipo queimadura na pele da região irradiada e possível regressão na mobilidade do braço (daí já ter combinado com o fisioterapeuta voltar para mais umas sessões após o fim da radioterapia). Segundo o que me foi explicado pelos médicos e enfermeiros e partilhado por quem já passou pelos tratamentos, normalmente estes sintomas fazem-se sentir numa fase mais tardia do tratamento e até nas semanas seguintes ao final do mesmo. A longo prazo podem surgir umas complicações mais chatas a nível dos pulmões, coração, ossos e tiróide (pelo menos deste posso dizer que me safo) pois a radioterapia, apesar de mais localizada, tal como a quimioterapia não é um tratamento com especificidade celular e tanto ataca células malignas como benignas.

É muito bonita toda esta teoria mas afinal de contas que tal é na realidade a radioterapia? É que tudo isto é o que dizem os livros… mas a mim não me enganam! Sim, que eu sou uma moça informada e vi todos os episódios dos Ficheiros Secretos! (estavam a achar isto tudo muito sério, confessem!!!)

Primeiro levam-nos para uma sala fria. Despidas da cintura para cima, deitam-nos numa maca com os braços acima da cabeça. Alinham as nossas tatuagens com uns feixes laser vermelhos que se cruzam sobre nós. Ouvimos o ranger da porta metálica a fechar. E é quando ficamos sozinhas, fechadas naquela sala gélida, que tudo começa!

Assim que fecham a porta o aparelho ganha vida. Começa a girar à nossa volta. De repente, atrás de uma das peças revela-se nitidamente a vértebra de algo alienígena, convenientemente disfarçado, como se de um braço integrante do equipamento se tratasse. As suas parecenças com o oitavo passageiro são óbvias e, cada vez que aquela parte da maquineta passa sobre a minha cabeça, aguardo que um pedaço de baba viscosa se escape e desmascare o amigo oculto. Felizmente ia já em modo alerta pois já uma amiga me havia avisado da sua presença (sim, não sou a única, nem tanto fui a primeira a ver tal ser!) e desde o primeiro tratamento mantenho o bicho debaixo de olho.

Continua a rotação em nossa volta e eis que fica ao alcance do meu olhar o grande ecrã redondo.
Consigo visualizar uma imagem de luz pixelizada que se vai alterando em padrões que não consigo entender. À primeira vista aquela imagem faz-me lembrar um código QR. Porém, olhando com mais atenção e, acompanhando o seu movimento, identifico a imagem como algo saído do saudoso ZX Spectrum. E tudo faz sentido (na minha cabeça faz, ok?), quando oiço com atenção o ruído de fundo que acompanha o tratamento. Tal e qual o que se fazia ouvir durante aqueles minutos intermináveis em que víamos as risquinhas a passar e rezávamos aos deuses dos videojogos para que a cassete não encravasse. Isto faz-me pensar... estará aquele Alien escondido a tentar comunicar comigo através daquelas luzes ou será apenas um saudosista que arranjou ali o seu cantinho para estar sossegado a jogar Jet Set Willy ou Chuckie Egg e não está nem aí para mim?

A parte boa é que os tratamentos são muito rápidos (cerca de dez minutos), e seja lá qual for a experiência que estes seres alienígenas andam a fazer comigo, até agora não provocam qualquer dor. 

Não, não me mandem ainda internar! Ainda tenho 19 sessões pela frente e juro que, apesar de já ter perdido o meu look Sigourney Weaver, quando o amigo se desmascarar o convenço a tirar uma selfie!



Ao ver a imagem que criei, talvez comece a duvidar um pouquinho (mas só um pouquinho) da minha sanidade mental...